A troca de cartas entre Jung e Bill W. e as Aventuras do Barão de Münchhausen

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Por Carlos Eduardo Fraga - Filósofo, psicanalista, doutor em Psicologia e Amigo de A.A..
SOBRE OS PRINCÍPIOS DA RECUPERAÇÂO EM A.A.

 
 
A troca de cartas entre Bill W. e Jung, no início dos anos sessenta, é um momento muito esclarecedor da história de A.A..  São apenas duas cartas, mas de conteúdo muito profundo.  Mostram o resultado do trabalho de toda uma vida de dois homens excepcionais.  O cofundador da Irmandade, com seu dom de escrever com clareza e simplicidade, resume de forma magistral não só a história da formação de Alcoólicos Anônimos como também os princípios fundamentais do processo de recuperação.  Por outro lado, Jung, psicanalista célebre, entende perfeitamente a carta e revela ideias sobre o alcoolismo das quais nunca tinha falado antes.
 
A ideia essencial dessas cartas é que sozinho um alcoólico não consegue se libertar de sua compulsão.  Por outro lado, não seria também outra pessoa que teria o poder de libertá-lo dessa condição.  Somente vir a acreditar em um poder superior (P.S.) teria essa força de mudar a vida de um dependente de álcool.  Essa é a principal ideia das cartas e o primeiro elo que deu origem a A.A..  Foi essa ideia que Ebby T. transmitiu a Bill em 1934 e que veio diretamente do psicanalista através de Rowland H., conforme Bill relata na carta de 1961 ao próprio Jung.
 
Bill relata a Jung o quanto sua decisão de desistir de tratar Rowland, assim como a desistência do Dr. Silkworth de tratar dele próprio, ajudou a formar o princípio que serve de base a A.A.: que nenhuma pessoa pode se livrar sozinha do alcoolismo e nem pode ser salva por uma outra pessoa, somente o ato de vir a acreditar em um poder superior pode devolvê-la à sanidade.  Ou seja, é preciso uma mudança na maneira de pensar, começar a acreditar em um P.S. para que, só então, ele comece a atuar.  É preciso sair do egocentrismo, principal característica do alcoólico de acordo com o capítulo V do Livro Azul, e saber que há algo fora do eu, algo que pode ajudar se a pessoa acreditar e se ela pedir essa ajuda.  É uma mudança que, como diz Jung, equivale a uma conversão: tira-se o centro de si mesmo e coloca-se fora, só assim se pode pedir ajuda e receber essa ajuda.  É o vir a acreditar que pode abrir a mente e permitir a conexão com algo maior e exterior a si.  Só esse P.S. exterior ao eu tem realmente o poder de mudar a vida do dependente.  Assim, se sai do egocentrismo, que é principal problema do alcoólico e uma maneira errada de pensar.  Não se é o centro do mundo.  Insistir nisso, especialmente no caso do alcoolismo, só poderá levar a conseqüências trágicas.  Muito importante também é entender que esse P.S. é como cada um o concebe.  Portanto, ele pode ser até mesmo o grupo ou a própria programação de A.A..  Isto será o suficiente para sair da maneira egocêntrica de pensar e iniciar a recuperação.  Quando Jung disse a Rowland que não poderia ajudá-lo, assim como o Dr. Silkworth disse também a Bill, isto o levou a uma crise (fundo de poço) cuja única saída foi buscar um P.S..  Tanto Bill como Rowland não acreditavam mais nas próprias forças para parar de beber devido às suas inúmeras recaídas.  Quando seus médicos de confiança disseram não ter poder também para ajudá-los, entraram em grande desespero, em um verdadeiro fundo de poço.  Porém, Jung apontou uma esperança, um caminho para Rowland: somente algo como uma conversão religiosa poderia reverter a maneira egocêntrica de pensar e recuperar um alcoólico.  Este é o sentido da fórmula dita pelo psicanalista: Spiritum x Spiritus.  Para deter o alcoolismo é preciso uma mudança espiritual, ou seja, vir a acreditar em um P.S..
 
A situação do alcoólico na ativa lembra a de um personagem de livros infantis: o Barão de Münchhausen.  Ele era um grande mentiroso e disse ter-se salvado da areia movediça se puxando pelo próprio rabo de cavalo.  Estar preso na areia movediça lembra muito a condição de um alcoólico na ativa: quanto mais se tenta sair sozinho, mais se afunda.  Somente em uma história fantasiosa, mentirosa, alguém pode tirar a si mesmo da areia se puxando pelos cabelos.  Mas, é nisso que parece acreditar um alcoólico na ativa, se afundando cada vez mais em problemas.
 
Quem está afundando na areia movediça precisa acreditar que alguém pode ajudá-lo e, depois, pedir ajuda.  Acreditar primeiro que alguém pode ouvi-lo e depois gritar por socorro.  Uma força externa pode ajudar, mas só depois de se desistir de sair sozinho e, então, buscar por ajuda.  Antes de tudo, é preciso desistir de sair sozinho; depois, vir a acreditar que se pode receber ajuda para, finalmente, pedir e receber essa ajuda.  Exatamente assim é também no caso do alcoolismo, como mostram os três primeiros Passos da programação.
 
Como dissemos antes, uma pessoa sozinha não tem o poder de tirar a compulsão de outra.  Porém, no tipo de conversão espiritual sugerida por Jung a Rowland, e depois aperfeiçoada por A.A., a mútua-ajuda entre semelhantes é fundamental.  É sendo acolhido por um grupo e se identificando com seus iguais que um alcoólico consegue cada vez mais acreditar em um poder superior que poderá devolvê-lo à sanidade.  Em A.A., os semelhantes são os mediadores do contato com o poder superior.  É na consciência coletiva grupal que pode se manifestar esse poder superior.
 
Isto até nos lembra um outro tipo de história infantil: os contos de fadas.  Em alguns deles, aparece um objeto misterioso: o espelho mágico.  E, realmente, até parece mágica a força que nasce da identificação, do espelhamento com os semelhantes em A.A..  Quando se chega ao grupo, se é acolhido gentilmente por iguais.  É possível então se ver neles, ver que passaram por situações muito parecidas.  É possível vê-los como a si mesmo, ver neles o próprio alcoolismo, admitir então ali que se é também alcoólico.  Mas, além disso, se pode perceber que estão se recuperando.  E, notando isso, os recém-chegados conseguem vir a acreditar que poderão se recuperar também.  É nesse espelho de identificação que conseguem vir a acreditar em um poder superior.  Como que magicamente, neste reflexo, o poder de se recuperar dos membros pode nascer em cada recém-chegado. Uma força nova brota do encontro de iguais.  É a volta da fé infantil perdida, é um voltar a acreditar na vida, a acreditar em um final feliz depois de tanto sofrimento.  São essas as Promessas de A.A. ou, como se diz na literatura, a caminhada do destino feliz.
 
@cadufraga.filosofia