Entrevista: ELAS ESTÃO BEBENDO MAIS

  • Cristina Thomaz

Todos os Artigos


Revista Viva Saúde - Março 2024
 
Segundo dados da OMS, no Brasil, há três milhões de pessoas dependentes de álcool de diversas idades, gêneros e classes sociais. Mas o crescente número de mulheres com hospitalizações e até óbitos referentes ao abuso de álcool preocupa especialistas.
por Cristina Thomaz
 
O consumo excessivo de álcool vem afetando como nunca as mulheres brasileiras. Foi o que ficou evidente no Anuário Álcool e a Saúde dos Brasileiros: Panorama 2023, elaborado pelo Centro de Informações sobre Saúde do Álcool (CISA). Houve nesse período um aumento de 7,5% das mortes e de 5% das hospitalizações atribuíveis ao álcool entre as mulheres, quando comparadas às taxas por 100 mil habitantes entre 2010 e 2021. Entre os homens houve queda nesses índices – de 8% e 13%, respectivamente. Mas o que será que está acontecendo para que elas bebam mais? Nesta entrevista exclusiva à VivaSaúde, Jaira Freixiela Adamczyk, psicóloga e mestre em tratamento e prevenção à dependência química, aponta não só os fatores que explicam esse contexto como afirma que os efeitos do álcool nelas são, sim, mais agressivos. Acompanhe.
 
Quando uma pessoa pode ser considerada alcoólica?
O alcoolismo é um grave problema de saúde pública com diversos impactos em nossa sociedade, como violência doméstica, morte prematura, estupro, gravidez precoce, síndrome alcoólica fetal, suicídio, acidente no trânsito e famílias destruídas, entre outros. Desde 1967, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece o alcoolismo como uma doença crônica e multifatorial, isto é, diversos fatores podem contribuir para sua evolução, como fatores genéticos e psicossociais, incluindo a quantidade e frequência de uso da bebida alcoólica. A mesma entidade diz que, no Brasil, há três milhões de pessoas dependentes de álcool de diversas idades, gêneros e classes sociais. Diagnosticar uma pessoa como alcoolista é complexo e necessita de uma avaliação clínica baseada em critérios do Código Internacional de Doenças CID 10 e do Manual de Transtornos Mentais DSM-V. Porém, existem alguns sinais e sintomas que indicam que uma pessoa está se tornando alcoolista ou apresenta um grande risco para essa doença. 
 
E quais são esses sinais?
Os mais comuns são: sentir que deveria diminuir a bebida; irritação quando recebe críticas sobre seu modo de beber; beber sozinho mesmo sem nenhum motivo; ter dificuldade em parar de beber uma vez que começa; alteração do estado emocional (raiva, irritação, agressividade) quando não pode ingerir bebida alcoólica; afastamento de familiares e amigos para beber sem ser incomodado; sentir culpa pela forma de beber; e dizer que pode parar de beber quando quiser, mas não consegue. Ao reconhecer alguns desses sinais em você ou num ente querido, procure ajuda de um profissional médico. O alcoolismo é uma doença tratável.
 
Voltando à questão das mulheres, por que elas estão consumindo mais álcool?
Acredito que por muitas razões. O consumo da bebida alcoólica pela mulher permaneceu muitas décadas restrito ao lar, com permissão de beber somente drinques de baixo teor alcoólico. Fatos marcantes como a entrada da mulher no mercado de trabalho e sua grande luta pelo reconhecimento dos seus direitos foram, sem dúvida, alavancas para conquistas femininas. Acompanhando esse movimento, a mulher deixa o beber solitário e se permite conviver num espaço até então restrito aos homens, como bares, botequins e rodas de conversa na esquina. Em pouco mais de uma década, o consumo abusivo de álcool pela população feminina cresceu aproximadamente 30%.
 
Parece que a pandemia também deu sua contribuição nesse sentido, certo?
Sim, teve um papel significativo, pois exigiu uma mudança radical na vida de milhares de pessoas. Tarefas como equilibrar as responsabilidades da casa, trabalhar home office e cuidar da educação dos filhos recaíram desproporcionalmente sobre elas. Após um exaustivo dia de trabalho, muitas encontraram no álcool um grande alívio para as suas dores físicas e emocionais. Ainda tem outro ponto: mulheres que antes bebiam sozinhas dentro de casa ou a caminho do trabalho, e que por muitos anos esconderam delas mesmas a doença do alcoolismo, buscaram ajuda on-line motivadas pelo medo de muitas perdas, em especial de seus filhos. Um desses espaços de ajuda remota foi a Colcha de Retalhos de Alcoólicos Anônimos. Antes da pandemia, as mulheres representavam entre 9% e 13% dos membros de Alcoólicos Anônimos. Com as reuniões a distância, chegaram a 44%. 
 
As propagandas de bebidas alcoólicas têm investido em vender bebida para o público feminino. Isso colabora para o aumento do consumo?
As estratégias utilizadas na elaboração dessas propagandas são meticulosamente associadas à imagem do prazer, da beleza, da força, do erótico ou mesmo da graça, acompanhada de um jargão que favorece a criação de uma memória afetiva e prazerosa no imaginário popular. São imagens de mulheres lindas, poderosamente sedutoras, com seu corpo exposto. Âncoras mentais são instaladas e passam a nortear as escolhas do indivíduo por um determinado tipo de bebida, o que justifica os gastos exorbitantes das indústrias em propaganda de bebidas alcoólicas.
 
Os efeitos do excesso são mesmo mais devastadores?
As mulheres correm mais risco de desenvolver doenças hepáticas do que os homens e há outros problemas tão graves quanto, como câncer de mama e hipertensão arterial. Pesquisas indicam que mulheres que bebem mais do que três drinques por dia [lembrando que um drinque equivale a um copo de vinho, uma lata de cerveja ou 50 ml de bebida destilada] duplicam o risco de hipertensão arterial. Em relação ao câncer de mama, mulheres habituadas a ingerir de dois drinques e meio a cinco por dia apresentam probabilidade 40% maior de desenvolver a doença. Ainda há alto risco de osteoporose em mulheres com menos de 60 anos que tomam de dois a seis drinques por dia, tendo maior propensão de fraturas de colo de fêmur e de antebraço. Os distúrbios psiquiátricos são mais prevalentes em mulheres alcoólicas também: a incidência de depressão em mulheres que abusam de álcool é de 30% a 40%, enquanto a anorexia e a bulimia estão presentes em 15% a 32%.
 
Existe alguma justificativa para essa realidade?
Mulheres apresentam maior vulnerabilidade fisiológica ao consumo de bebida alcoólica. A diferença corpórea entre homens e mulheres precisa ser considerada, especialmente os níveis naturalmente mais altos de gordura e mais baixos de água corporal nas mulheres. A gordura retém o álcool, enquanto a água ajuda a dispersá-lo, o que torna a resposta fisiológica ao álcool ainda mais complicada nas mulheres. Elas ainda possuem uma menor quantidade da enzima desidrogenase, que metaboliza o álcool. Por essas razões, mesmo bebendo menos que os homens, elas adoecem mais rápido. Vale destacar que, à medida que envelhece, a mulher sofre o aumento na razão gordura/água.
 
Na sua visão, como deve ser o tratamento delas para vencer o alcoolismo?
Tão complexas quanto as complicações clínicas do álcool no organismo da mulher, muitas doenças emocionais também são impulsionadas pelo alcoolismo na vida de homens e mulheres. Porém, o estigma do alcoolismo se faz muito mais presente quando associado à questão do gênero. Para muitos é difícil imaginar uma mulher grávida alcoolizada ou uma mãe alcoolizada dirigindo em alta velocidade com os filhos dentro do carro. O preconceito em relação ao alcoolismo em mulheres resulta em baixa procura por ajuda. Na maioria das vezes, as mulheres que sofrem da doença do alcoolismo procuram o profissional médico relatando estar sofrendo de ansiedade e depressão. Ao longo de muitos anos atendendo homens e mulheres que sofrem do alcoolismo, percebo a imensa dificuldade da mulher em reconhecer-se como alcoólica e revelar suas dolorosas reservas e segredos. Por isso, as mulheres têm um tratamento tardio e uma baixa adesão em comparação com os homens, tornando- -se extremamente necessários espaços exclusivos para elas nos programas de tratamento ambulatorial ou internação, assim como em grupos de ajuda mútua, como Alcoólicos Anônimos. 
 
Jaira Freixiela Adamczyk é psicóloga, Mestre em Tratamento e Prevenção à Dependência Química, Terapeuta de Família, Casal e Individual com foco em Adicção