As asas do desejo

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Por Carlos Eduardo Fraga - Filósofo, psicanalista, doutor em Psicologia e Amigo de A.A..
OS PRINCÍPIOS DA RECUPERAÇÂO EM ALCOÓLICOS ANÔNIMOS

 
 
Asas do desejo é o nome de um belo filme alemão.  Nele, um anjo abre mão de suas asas para viver como humano, para enfrentar a vida como um simples mortal, com todas as dores e alegrias da realidade cotidiana.  Em Alcoólicos Anônimos, também é o desejo que pode dar “asas”.  Ele é o único requisito para se tornar membro e, assim, se iniciar um processo de recuperação que trará de volta a liberdade.  Somente o desejo de parar de beber pode libertar das garras do alcoolismo ativo.
 
O desejo, em nossa cultura, muitas vezes é associado ao pecado ou aos excessos.  Porém, existe um tipo de desejo que é positivo, que é inclusive um sinal de saúde e nunca têm excessos destrutivos.  Pelo contrário, ele é o que pode dar início a uma recuperação que refreará os excessos do alcoolismo.  É um desejo que precisa nascer no alcoólico.  Ele indica que ainda existe um mínimo de amor à vida, um mínimo de amor a si próprio que é o que impulsionará o início do esforço do processo de mudança de vida.  É como se diz em Alcoólicos Anônimos: “A.A. não é para quem precisa, é para quem quer”.  Por mais que se esteja sofrendo, por mais que se esteja precisando, sem esse “querer” não se inicia um processo de recuperação.
 
O propósito primordial de A.A. é a transmissão de sua mensagem.  Transmitir não é só informar.  Transmitir é também tocar, afetar, colocar em movimento.  Assim como num mecanismo uma engrenagem coloca outra em movimento diretamente ou, então, através de polias que as ligam; a mensagem de A.A. também transmite força, fé e esperança através da engrenagem que são seus membros.  Trabalhando juntos e em igualdade podem fazer essa mensagem tocar outros alcoólicos.  Assim, surgem novos membros que garantem a continuidade de transmissão e a sobrevivência da irmandade.
 
Mas, o que é a essência da mensagem de Alcoólicos Anônimos?  O que ela procura transmitir para trazer novos membros?  Ela procura transmitir justamente esse desejo de parar de beber.  Sem despertar esse desejo e depois mantê-lo e aumentá-lo, não se consegue novos membros, pois ele é o único requisito para fazer parte da irmandade.  A mensagem busca primordialmente fazer nascer e crescer esse desejo.  Através da identificação, de partilhas que falam de como era a vida no alcoolismo ativo e de como ficou depois do encontro com A.A., se transmite esse “querer” parar de beber.  Esse desejo de parar de beber que se busca fazer nascer na transmissão da mensagem nada mais é que um “querer” viver, um “querer” voltar a viver livre do sofrimento causado por uma vida de bebedeiras.
 
Mas, como A.A. faz para fazer nascer ou crescer esse desejo de parar de beber?  O desejo só cresce em terreno fértil.  É preciso criar um ambiente favorável para a recuperação.  As Tradições buscam justamente isso: criar uma espécie de estufa onde a semente da recuperação de cada um possa se desenvolver.  Por isso, o bem estar comum vem logo em primeiro lugar na Primeira Tradição.  Um ambiente hostil ou de controvérsias não favorece ao crescimento espiritual dos membros.
 
É dentro deste ambiente protegido e seguro que os novos membros podem ser acolhidos.  Ali podem se sentir seguros para admitir seu alcoolismo e falarem honestamente sobre si.  É por identificação, ouvindo outros membros partilharem as dores e também as alegrias da recuperação, que começam a acreditar que também podem conseguir mudar de vida.  Começam a acreditar que um poder superior pode vir ajudá-los através das mãos de um grupo de pessoas que são como ele, semelhantes a ele.  Através da mútua-ajuda dão-se as mãos e se forma assim um terceiro: um poder superior que se manifesta justamente neste encontro.  Em A.A., o reencontro com um poder superior se dá através do encontro com os semelhantes.  É nesse encontro que nasce e cresce um desejo mais saudável a cada vinte e quatro horas.
 
No filme Asas do Desejo, o anjo abre mão de suas asas para viver como um humano comum.  É o desejo, sua paixão por uma trapezista, que o faz querer viver uma vida humana comum com suas dores e alegrias.  É o desejo também o que pode fazer um alcoólico abrir mão da anestesia do álcool e voltar à realidade da vida.  É pelo desejo que volta a viver, a aceitar a vida como ela é.  Mas, o processo de recuperação não é só aceitar a vida, é mais que isso, é passar a ter um real amor à vida.  Este é o despertar espiritual prometido pela prática da programação e claramente descrito no décimo segundo passo.
 
Na mitologia greco-romana o desejo é chamado Cupido ou Eros.  Suas asas na Grécia antiga eram representadas de forma diferente da moderna.  Na modernidade, o Cupido é representado com asas de penas assim como os pássaros.  Na Grécia antiga, era representado muitas vezes com coloridas asas de borboleta.  Isto parece querer indicar a força do Cupido, a força do desejo.  A borboleta pode simbolizar a mudança, a metamorfose.  A lagarta se transforma em borboleta.  A lagarta compulsiva, que come sem parar, precisa se metamorfosear na livre borboleta.  O Cupido é o símbolo do desejo que dá asas, que faz mudar, têm asas de borboleta para mostrar que ele tem a força da mudança e pode trazer a liberdade do vôo.
 
Mas, para a lagarta compulsiva se transformar na livre borboleta é preciso a segurança e proteção do casulo.  As Tradições são um manto protetor e criam uma espécie de casulo, um ambiente favorável, onde alcoólicos e alcoólicas ganham asas e liberdade.    
 

Filme ASAS DO DESEJO, 1987, direção de Wim Wenders, Alemanha e França.  Na Berlim pós-guerra, Damiel e Cassiel são anjos que perambulam pela cidade.  Invisíveis aos mortais, eles leem pensamentos e tentam confortar a solidão e a depressão das almas que encontram.  Entretanto, um dos anjos, ao se apaixonar por uma trapezista, deseja abrir mão de sua imortalidade para se tornar um humano e experimentar as dores e alegrias de cada dia.